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Tópico: Uma Vela para Dario - Dalton Trevisan

  1. #1
    Banido Avatar de nerj
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    Uma Vela para Dario - Dalton Trevisan

    Quote Originalmente postado por nerj
    LEIAM !!
    Uma vela para Dario

    Dalton Trevisan



    Dario vinha apressado, guarda-chuva no braço esquerdo e, assim que dobrou a esquina, diminuiu o passo até parar, encostando-se à parede de uma casa. Por ela escorregando, sentou-se na calçada, ainda úmida de chuva, e descansou na pedra o cachimbo.

    Dois ou três passantes rodearam-no e indagaram se não se sentia bem. Dario abriu a boca, moveu os lábios, não se ouviu resposta. O senhor gordo, de branco, sugeriu que devia sofrer de ataque.

    Ele reclinou-se mais um pouco, estendido agora na calçada, e o cachimbo tinha apagado. O rapaz de bigode pediu aos outros que se afastassem e o deixassem respirar. Abriu-lhe o paletó, o colarinho, a gravata e a cinta. Quando lhe retiraram os sapatos, Dario roncou feio e bolhas de espuma surgiram no canto da boca.

    Cada pessoa que chegava erguia-se na ponta dos pés, embora não o pudesse ver. Os moradores da rua conversavam de uma porta à outra, as crianças foram despertadas e de pijama acudiram à janela. O senhor gordo repetia que Dario sentara-se na calçada, soprando ainda a fumaça do cachimbo e encostando o guarda-chuva na parede. Mas não se via guarda-chuva ou cachimbo ao seu lado.

    A velhinha de cabeça grisalha gritou que ele estava morrendo. Um grupo o arrastou para o táxi da esquina. Já no carro a metade do corpo, protestou o motorista: quem pagaria a corrida? Concordaram chamar a ambulância. Dario conduzido de volta e recostado á parede - não tinha os sapatos nem o alfinete de pérola na gravata.

    Alguém informou da farmácia na outra rua. Não carregaram Dario além da esquina; a farmácia no fim do quarteirão e, além do mais, muito pesado. Foi largado na porta de uma peixaria. Enxame de moscas lhe cobriu o rosto, sem que fizesse um gesto para espantá-las.

    Ocupado o café próximo pelas pessoas que vieram apreciar o incidente e, agora, comendo e bebendo, gozavam as delicias da noite. Dario ficou torto como o deixaram, no degrau da peixaria, sem o relógio de pulso.

    Um terceiro sugeriu que lhe examinassem os papéis, retirados - com vários objetos - de seus bolsos e alinhados sobre a camisa branca. Ficaram sabendo do nome, idade; sinal de nascença. O endereço na carteira era de outra cidade.

    Registrou-se correria de mais de duzentos curiosos que, a essa hora, ocupavam toda a rua e as calçadas: era a polícia. O carro negro investiu a multidão. Várias pessoas tropeçaram no corpo de Dario, que foi pisoteado dezessete vezes.

    O guarda aproximou-se do cadáver e não pôde identificá-lo — os bolsos vazios. Restava a aliança de ouro na mão esquerda, que ele próprio quando vivo - só podia destacar umedecida com sabonete. Ficou decidido que o caso era com o rabecão.

    A última boca repetiu — Ele morreu, ele morreu. A gente começou a se dispersar. Dario levara duas horas para morrer, ninguém acreditou que estivesse no fim. Agora, aos que podiam vê-lo, tinha todo o ar de um defunto.

    Um senhor piedoso despiu o paletó de Dario para lhe sustentar a cabeça. Cruzou as suas mãos no peito. Não pôde fechar os olhos nem a boca, onde a espuma tinha desaparecido. Apenas um homem morto e a multidão se espalhou, as mesas do café ficaram vazias. Na janela alguns moradores com almofadas para descansar os cotovelos.

    Um menino de cor e descalço veio com uma vela, que acendeu ao lado do cadáver. Parecia morto há muitos anos, quase o retrato de um morto desbotado pela chuva.

    Fecharam-se uma a uma as janelas e, três horas depois, lá estava Dario à espera do rabecão. A cabeça agora na pedra, sem o paletó, e o dedo sem a aliança. A vela tinha queimado até a metade e apagou-se às primeiras gotas da chuva, que voltava a cair.

  2. #2
    Banido Avatar de Du Doido
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    Re: Uma Vela para Dario - Dalton Trevisan

    caralho.... que coisa real!

  3. #3
    GeForce 9800 GT Avatar de Rainor
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    Re: Uma Vela para Dario - Dalton Trevisan

    É a realidade em que o Brasil se transformou (talvez ainda não tenhamos chegado a esse ponto de safadeza, mas estamos a caminho).
    Athlon XP 2200+, MoBo ASUS A7V8X-X, 512 DDR 333, Radeon 9500 PRO 128, CD-RW Optorite, HD Sansung 80 GB 7200 rpm, Monitor Sansung 17". Turbo 600 ADSL

  4. #4
    Banido Avatar de nerj
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    Re: Uma Vela para Dario - Dalton Trevisan

    O Dalton ae eh o escritor mais importante aqui da região, esse conto foi tirado do livro dele "Em Busca de Curitiba Perdida"....além de cair em diversos vestibulares, os textos dele são bastante estudados na Europa

  5. #5
    Radeon HD4870 Avatar de Juquinha
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    Re: Uma Vela para Dario - Dalton Trevisan

    Quote Originalmente postado por Rainor
    É a realidade em que o Brasil se transformou (talvez ainda não tenhamos chegado a esse ponto de safadeza, mas estamos a caminho).
    Acho que já estamos vivenciando uma realidade parecida com a de "Uma Vela para Dario".

    Aqui em São Paulo, as coisas são muito piores, vemos cada coisa que até Deus duvida.
    PC: Biostar TPower I55 || Core i5 750 Stock || ECS Geforce GTS 450 1GB Black || Corsair XMS3 2x2GB DDR3 1333 MHz || HD Seagate Barracuda 500GB 7200.12 || Corsair VX 450W
    Jogando: Fallout 3

    - Malandro é o pato, que já nasce gingando e falando “coé, coé”.
    - A putaria não se encontra situada meramente num espaço físico, mas sim transcende, do espírito daqueles que exploram e gostam.

  6. #6
    Voodoo Avatar de Thatha
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    Re: Uma Vela para Dario - Dalton Trevisan

    PArece o conto do homem que morreu de fome do Sabino

    NOTÍCIA DE JORNAL
    Leio no jornal a notícia de que um homem morreu de fome. Um homem de cor branca, trinta anos, presumíveis, pobremente vestido, morreu de fome, sem socorros, em pleno centro da cidade, permanecendo deitado na calçada durante setenta e duas horas, para finalmente morrer de fome.
    Morreu de fome. Depois de insistentes pedidos de comerciantes, uma ambulância do pronto socorro e uma rádio patrulha foram ao local, mas regressaram sem prestar auxílio ao homem, que acabou morrendo de fome.
    Um homem que morreu de fome. O comissário de plantão (um homem) afirmou que o caso (morrer de fome) era da alçada da delegacia de mendicância, especialista em homens que morrem de fome. E o homem morreu de fome.
    O corpo do homem que morreu de fome foi recolhido ao Instituto Médico Legal sem ser identificado. Nada se sabe dele, senão que morreu de fome.
    Um homem morreu de fome em plena rua, entre centenas de passantes. Um homem caído na rua. Um bêbado. Um vagabundo. Um mendigo, um anormal, um tarado, um pária, um marginal, um proscrito, um bicho, uma coisa – não é um homem. E os outros homens cumprem seu destino de passantes, que é o de passar. Durante setenta e duas horas todos passam, ao lado do homem que morre de fome, com um olhar de nojo, de desdém, inquietação e até mesmo piedade, ou sem olhar nenhum. Passam, e o homem continua morrendo de fome, sozinho, isolado, perdido entre os homens, sem socorro e sem perdão.
    Não é da alçada do comissário nem do hospital nem da rádio patrulha, por que haveria de
    ser da minha alçada? Que é que eu tenho com isso? Deixa o homem morrer de fome.
    E o homem morre de fome. De trinta anos presumíveis. Pobremente vestido. Morreu de
    fome, diz o jornal. Louve-se a insistência dos comerciantes, que jamais morrerão de fome,
    pedindo providências às autoridades. As autoridades nada puderam fazer senão remover o corpo do homem. Deviam deixar que apodrecesse, para escarmento dos outros homens. Nada mais puderam fazer senão esperar que morresse de fome.
    E ontem, depois de setenta e duas horas de inanição, tombando em plena rua, no centro mais movimentado do Rio de Janeiro, um homem morreu de fome. Morreu de fome.

    Fernando Sabino
    Catterpilar: Um lado a fará crescer, e o outro lado a fará diminuir.
    Alice: Um lado de que? O outro lado de que?
    Catterpilar: Do cogumelo.


    EU E A ALICE TAMBÉM ACREDITAMOS NO GERA!

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